
A revista brasileira Humanitas, dedicada à filosofia, ciências humanas e cultura em geral, dedicou em seu último número – sob os auspícios e a diligência de Cristina Almeida, a editora da revista – algumas de suas páginas em homenagem a Liliana Herrera.
Graças a este perfil filosófico e literário, de Ciprian Vălcan, publicado em uma revista de circulação nacional e de longo alcance, muitos brasileiros terão a oportunidade de saber quem foi Liliana Hererera (1960-2019), a medida desmedida de sua importância intelectual, cultural e acadêmica, não apenas na Colômbia, e também de abordar Cioran pelos olhos (e pelo coração) de sua correspondente colombiana.
La revista brasileña Humanitas, dedicada a la filosofía, las humanidades y la cultura en general, dedicó en su último número —bajo el auspicio y la diligencia de Cristina Almeida, editora de la revista— algunas de sus páginas en honor a Liliana Herrera (1960-2019).
Gracias a este texto de Ciprian Vălcan, traducido al portugués y publicado en una revista nacional de gran alcance, muchos brasileños tendrán la oportunidad de conocer quién fue Liliana Hererera (1960-2019), la medida desmedida de su importancia (intelectual, cultural y académica), no solo en Colombia, y también de acercarse a Cioran a través de los ojos (y el corazón) de su interlocutora colombiana.

Ela foi professora, poeta, tradutora, curadora cultural e se dedicou à obra de Emil Cioran, filósofo romeno. A sua ligação com a obra dele ia muito além do interesse intelectual. O ponto que os uniu foi a Romênia
Encontrei Liliana Herrera (1960-2019) pela primeira vez em Sibiu, em 2007, por ocasião do Colóquio Cioran organizado por Eugène van Itterbeek, mas não posso dizer que a conheci naquela ocasião porque só a vi de longe. Então, eu a cumprimentei en passant e, em seguida, soube que ela estava um pouco doente e não poderia apresentar sua conferência.
Pensei que ela estivesse tendo uma má sorte terrível, tanto mais quando eu soube que ela já tinha tido um outro incidente desagradável ao chegar à Romênia – a companhia aérea havia perdido sua bagagem. Depois, não tive nenhuma notícia de Liliana durante três anos, até receber uma mensagem dela pedindo-me que lhe enviasse La concurrence dês influences culturelles françaises et allemandes dansl’oeuvre de Cioran, livro que é fruto de minha tese de doutorado na École Pratique dês Hautes Études de Paris, de 2006, e publicado pela editora do Institutul Cultural Rôman em 2008.
Eu lhe respondi prontamente, explicando que não possuía mais nenhum exemplar da obra comigo e, tampouco, havia conseguido encontrá-lo nas livrarias, mas ofereci de lhe enviar o volume em PDF. Ela aceitou e, dois dias depois, lhe mandei o que tinha. Mais de um ano depois, ela me escreveria novamente dizendo que tinha gostado bastante do livro e que queria traduzi-lo ao espanhol. Respondi que ficaria honrado, mas manifestei certa reserva pois me parecia um esforço colossal – logo pensei no imenso trabalho de ir atrás das tantas citações contidas no volume.
Encontro em Pereira
Liliana agradeceu, com contentamento, e não tivemos contato por mais de doze meses. Quando ela finalmente me escreveu de novo, foi para informar que já estava em pleno processo de tradução, contando com o auxílio de um professor francês nativo, residente em Pereira, Patrick Petit. Nossa correspondência manteve então mais ou menos o mesmo ritmo: uma mensagem por ano. Esta só se intensificou em 2014, quando Liliana começou a me enviar, então, partes do texto recém-traduzido para esclarecer e confirmar o significado de frases ou palavras que ela estava em dúvida como traduzir, de modo que fiz os devidos esclarecimentos.
Agradeci-lhe pela diligência e seguimos em contato. Ela convidou-me então, em 2014 e 2015, ao colóquio dedicado a Cioran que organizava há anos em Pereira.[1] Tive de recusar, pois nas duas ocasiões já tinha viagens internacionais programadas. Mas, finalmente, pude aceitar o convite para a edição de 2016 do colóquio.[2] Até lá, a tradução de Las influencias culturales alemanas y francesas[3]já havia sido concluída e o livro publicado, na primavera de 2016.
Eu só conheci Liliana de verdade na minha estadia de dez dias na Colômbia. À distância, tinha me causado a impressão de ser uma pessoa misteriosa, emotiva e muito reservada. Em Pereira, descobri um ser de rara delicadeza, uma mulher dotada de uma inesgotável energia, calorosa, cheia de charme, capaz de um entusiasmo contagiante e de dar provas de uma admirável franqueza. Liliana viveu para Cioran, para a música, para seus alunos e amigos, sempre pronta a ajudar e a promover talentos, ainda que sem recursos.
Tenacidade e charme
Ela se deslocava com uma graça inimaginável e, por sua atitude, realizou verdadeiros milagres, intimidando os burocratas e fazendo-os recuar diante dos impiedosos, desarmando com um simples sorriso os imbecis que se mostravam demasiado confiantes neles mesmos. Como seria de se esperar, era adorada pelos estudantes, que a seguiriam pelos quatro cantos do mundo assim lhes exigisse. Mas Liliana nunca exigiu nada, apenas impôs, com essa finesse que a tornava irresistível.
Em poucos anos, graças à sua extraordinária tenacidade, mas também ao seu charme pessoal irresistível, ela elevou a Universidade Tecnológica de Pereira (UTP), uma instituição colombiana não muito conhecida, ao nível de um dos mais importantes centros de estudos sobre a obra de Cioran na América Latina.
Ela trouxe para Pereira intelectuais franceses, holandeses, espanhóis, canadenses, brasileiros-romenos, publicou diversos volumes coletivos sobre Cioran, orientou teses de doutorado e monografias de licenciatura dedicadas a ele, deu entrevistas para os mais importantes jornais colombianos, traduziu artigos e livros, participou de programas de rádio e TV, e colava cartazes pela cidade toda para divulgar o colóquio Cioran. E, para enriquecê-lo ainda mais, tratou de envolver no projeto universidades e grupos de intelectuais de cidades vizinhas, para que se debatesse Cioran não apenas em Pereira, mas também em Manizales, Armenia e Cartago.[4]
Ligação com a Romênia
A casa de Liliana e Carlos Ossa, seu distinto marido, ex-reitor da UTP, era repleta de livros, instrumentos musicais, discos de música clássica e incontáveis CDs. Sua grande amiga, a cantora Beatriz Calle,[5] amiúde improvisava, com sua voz grave improvável, formidáveis concertos para os convidados estrangeiros ao redor do piano do salão. As pessoas sentiam que havia algo de único, algo que já não é possível na Europa de hoje, cada vez mais obcecada pela tecnologia e pela produtividade, ainda que tivesse sido possível outrora, numa época cuja evocação parece permanecer unicamente graças à literatura.
A habitação de Liliana era um verdadeiro museu em miniatura dedicado à Romênia: imensos quadros de Cioran em diferentes fases de sua vida, a bandeira da Romênia, ícones em vidro, vasos de cerâmica, bonecos, máscaras de Maramureş,[6] pratos de porcelana adornados com motivos populares romenos, edições romenas e francesas das obras de Cioran, caixinhas de madeira, pingentes, copos de ţsuica.[7] Liliana tinha certeza de que, em outra vida, nascera e vivera na Romênia, e sua paixão a tinha atraído desde sempre a esse país estranho e distante.
Como ela me havia dito em Pereira, à noite, após o encerramento da parte oficial de nossos encontros, Liliana foi transformada por inteiro quando esteve na Romênia, ficou de tal maneira absorta em emoção, que apenas podia balbuciar algumas palavras: comia muito pouco e com muita dificuldade, gastava rapidamente a energia e precisava do apoio de Carlos para concluírem a viagem. Durante muito tempo sonhou em retornar à Romênia, imaginando cada detalhe, cada boulevard que ela queria percorrer, cada monumento a visitar, mas quando chegou a hora de realizar seu desejo, não o pôde, sentindo-se paralisada por um pânico supersticioso, traída pelo próprio corpo que mostrava-se, de súbito, incapaz de servi-la.
Estudante ávida
Na Colômbia, ansiava em ir à Romênia, sentia-se oprimida pelo desejo inexplicável de circular pelas ruelas das pequenas cidades da Transilvânia, seguindo os passos de Cioran; mas quando chegou o momento, começou a sofrer terríveis dores, durantes duas semanas, sem descanso. A Romênia, país que ela tanto amava, ameaçava transformar-se em um veneno para sua delicada compleição, o que não a impediu de sonhar que um dia poderia obter a cidadania romena e mudar-se para algum lugar na Transilvânia.
Buscando aprender a língua materna de Cioran, Liliana chegou à conclusão de que seria bom ter um interlocutor nativo da Romênia. Buscou por toda parte, mas havia poucos romenos na Colômbia, a maioria em Bogotá. Finalmente, descobriu que havia uma romena em Pereira, uma jovem garçonete. Ela conheceu a moça e lhe pediu que lhe ensinasse o romeno. Provavelmente intimidada pela ideia de que daria aulas para uma professora universitária, ela recusou, argumentando que não tinha tempo.
Mas Liliana não desistiu e começou a tentar a aprender por conta própria, utilizando diversos cursos publicados em Bucareste. E, para ter mais chances de aproveitamento e êxito, convenceu Rodrigo Menezes, um admirável intelectual brasileiro interessado pelo trabalho de Cioran, de estudar junto com ela, de modo que durante anos eles estudaram juntos, por Skype, a língua romena, praticando a conversa e escutando um ao outro.
Língua cheia de força
Em um dado momento, quando eu estava com Liliana e Carlos, ela me perguntou que palavras o padre ortodoxo havia falado durante a cerimônia do meu casamento. Tentei pronunciá-las tão lenta e claramente quanto possível: “Se cunună robul lui Dumnezeu x cu roaba lui Dumnezeu y”[8]. Ela me pediu que traduzisse, o que eu fiz, explicando-lhe que rob é sinônimo de “escravo”.
Ademais, tendo visto perto da casa um carrinho de mão com o qual os trabalhadores contratados por Carlos estavam transportando os materiais necessários para construir uma pequena oficina com ferramentas; comentei que esse instrumento tão útil, o carrinho de mão, também se diz roabă em romeno, e expliquei a homonímia.[9]
Minhas explicações deixaram-no fascinado, fortalecendo nele a convicção de que o romeno é uma língua cheia de força. Pegou um caderno e me pediu o favor de escrever nele: Se cunună robul lui Dumnezeu Carlos cu roaba lui Dumnezeu Liliana. Eu consenti, com divertimento, e escrevi o que me pedira em maiúsculas. Após tomar conhecimento, no outono de 2019, da terrível notícia da morte de Liliana, não pude me impedir de pensar que estas palavras deviam estar guardadas em algum caderno em sua casa, em Pereira.
VĂLCAN, Ciprian, “Liliana Herrera”, Revista Humanitas, ano XV, . 142, 2021. Trad. do romeno de Rodrigo Inácio R. Sá Menezes.
Ciprian Vălcan é filósofo, professor, escritor e ensaísta. Graduou-se em Filosofia na Universidade de Timişoara (Romênia), fez mestrado e o DEA na Sorbonne, e doutorado na École Pratique dês Hautes Études. Atualmente leciona na Universidade Aurel Vlaicu, na cidade de Aras (Romênia). rabanmaur@hotmail.com
Rodrigo Inácio R. Sá Menezes é Bacharel em Comunicação Social pela FAAP, bacharel em Filosofia pela PUC-SP, Mestre em Ciências da Religião e Doutor em Filosofia pela mesma instituição. Sua pesquisa acadêmica se concentra na obra de E.M. Cioran. Tem traduzido ensaios e aforismos seus, até então inéditos em português, do romeno e do francês, em revistas brasileiras de tradução. portalemcioranbr@gmail.com
[1] Cidade natal de M. Liliana Herrera A. Capital do departamento de Risaralda, no centro-oeste da Colômbia, na região conhecida como ejecafetero (“eixo cafeteiro”) devido à sua importância econômica na produção de café. Pereira é uma cidade moderna e cosmopolita, apesar de relativamente pequena, e bastante populosa tendo em vista sua tenra idade: tendo sido fundada em 1863 (completando 157 anos, portanto, em 2020), como um importante centro comercial e lugar de passagem entre as diferentes partes do país, possui hoje uma população de pouco menos de 500.000 habitantes. Pereira, e particularmente a Universidad Tecnológica de Pereira (UTP), na qual Liliana Herrera exerceu a maior parte de sua carreira docente, tornou-se uma das “Mecas” para os estudiosos da obra de Cioran ao redor do mundo (N. do T.).
[2] Foi a 9ª e penúltima edição do Encuentro Internacional Emil Cioran, em Pereira, cuja primeira edição aconteceu no ano de 2008 e a última em 2017 (N. do T.).
[3] Edição espanhola do livro, publicada pela editora da Universidad Tecnológica de Pereira (UTP) em 2016 e de cujo título está ausente a palavra Concurrence (“Concorrência”), presente no título original em francês.
[4] Três cidades próximas umas das outras, e de Pereira, apesar de situadas em departamentos distintos (Manizales no departamento de Caldas, Armenia no de Quindío, Cartago em Valle de Cauca e Pereira, como dito anteriormente, no departamento de Risaralda) (N. do T.).
[5] Amiga de Liliana Herrera, cantora de boleros e baladas. Sua voz pode ser escutada nas gravações de seu canal de YouTube: <https://www.youtube.com/channel/UCRyTds7CIQDme6m84VeLjpA>. Acesso em: 03/06/2020.
[6] Máscaras folclóricas adornadas e coloridas, típicas da região (que é também um judeţ, “departamento” ou “distrito” romeno) de Maramureş, na Romênia setentrional. A capital de Maramureş, que está situado na Transilvânia, como o distrito de Sibiu em que nasceu Emil Cioran, é Baia Mare, cuja população é de aproximadamente 120.000 habitantes.
[7] Pronuncia-se “tsuica” (em função do sinal diacrítico inferior na primeira letra, ţ). É a “cachaça” (bebida alcóolica) tipicamente romena, de alto teor alcóolico, e cujo ingrediente exclusivo é a uva.
[8] “Casam-se o servo de Deus x e a serva de Deus y” (N. do T.).
[9]A homonímia baseia-se na ideia de que, como um “escravo”, ou uma “escrava”(o gênero usual em romeno é o feminino), o “carrinho de mão” (roabă) executa tarefas braçais pesadas no lugar de quem o possui (N. do T.)
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